É a esquerda da mais-valia relativa quem mais tem contribuído para a expansão do capitalismo nos BRICS. Por João Valente Aguiar
Os eixos fundamentais da esquerda da mais-valia relativa nos BRICS
Nos últimos anos muito se tem escrito sobre a esquerda nacionalista portuguesa e sobre os impasses que ela coloca. Ora, o maior perigo do nacionalismo no seio da esquerda não é apenas a difusão de variadas formas de irracionalismo. É também o perigo de, a pouco e pouco, levar os próprios contestatários a raciocinar nos moldes preconizados pelos nacionalistas: a discussão centrada nos assuntos do país de origem.
Para fugir a esta “armadilha” escrevi este breve artigo sobre o facto de, neste século, ser uma parte da esquerda (a esquerda da mais-valia relativa) quem mais tem contribuído para a expansão do capitalismo em alguns dos países emergentes. Combinando a mais-valia relativa com a mais-valia absoluta, sob a hegemonia da primeira, e articulando o Estado central às prerrogativas de expansão das empresas, é nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que uma modalidade da esquerda dos gestores tem conseguido fornecer oxigénio à modernização capitalista. Esta é a esquerda dos gestores da mais-valia relativa, uma modalidade quase ausente em Portugal.
Seria demasiada coincidência se a ascensão dos BRICS não tivesse nada a ver com a presença de uma esquerda da mais-valia relativa na governação destes países. Desde o caso do PT no Brasil à reconversão do PC chinês, passando pela coligação de esquerda que governa a África do Sul, sem esquecer os ex-KGBs que estão no centro de poder da Rússia ou o governo do Partido do Congresso Indiano que governo o país até Maio passado, parece-me que a constituição de uma esquerda capaz de articular eficazmente o Estado e as empresas é parte relevante no processo de evolução do capitalismo no século XXI. Será da articulação entre Estados repressivos e ditatoriais (como o caso chinês e russo) e da criação de condições para o desenvolvimento pleno dos negócios das empresas (das ONGs às grandes transnacionais) que o capitalismo encontrará fôlego para um novo ciclo económico de expansão. A juntar a isto parece estar a ocorrer uma integração internacional cada vez mais interpenetrada e sólida tanto entre os BRICS, como entre cada uma destas economias e outros países emergentes.
Temos assim uma esquerda dos gestores, uma esquerda que, sem esquecer a mais-valia absoluta, se tem centrado na expansão da mais-valia relativa, precisamente porque se mostrou capaz de, por um lado, absorver os protestos sociais e, por outro, fortalecer o aparelho de Estado no sentido deste proporcionar melhores condições infra-estruturais e de financiamento para as empresas. Parece aqui contrariar-se a tese dicotómica e mecânica que contrapunha Estado e mercado. Pelo contrário, o sucesso económico dos BRICS contraria esse dualismo estéril, convocando a reflectir sobre as implicações e as reais relações entre o aparelho de Estado e as empresas. Esquerda, Estado e empresas são, nos BRICS, partes constitutivas e necessariamente interdependentes de um mesmo sistema de poder. A esquerda tem sido nos BRICS a vanguarda do Estado que, por sua vez, actua no sentido de fornecer condições materiais e políticas para o avanço do poder e dos investimentos das empresas.
Ao mesmo tempo, esta esquerda dos gestores tem sido inovadora política e socialmente.
Num primeiro âmbito repare-se que esta esquerda não é uma mera cópia da tecnocracia europeia ou norte-americana, apesar das suas cordiais relações de classe. Esta esquerda dos gestores surgiu fundamentalmente em países que tiveram algum tipo de movimentação operária de base nas décadas anteriores (lutas operárias no final dos anos 80 no ABC paulista; lutas de base aquando da Revolução Cultural tanto contra “elementos burgueses” como contra o Estado maoísta; lutas contra o apartheid na África do Sul; lutas no Leste europeu contra a burocracia soviética; lutas seculares camponesas na península indiana) e soube utilizar o recuo das lutas sociais para introduzir elementos da lean production toyotista em variados sectores.
Num segundo âmbito percebe-se que esta esquerda utiliza o Estado como trave central da sua actuação estratégica. Mas seria um erro reduzir a actuação desta esquerda a um estatismo clássico de nacionalizações e de recurso à violência para reprimir manifestações de rua. Pelo contrário, esta esquerda tem sido capaz de, num mesmo passo, financiar ONGs e movimentos sociais e introduzir elementos dirigentes destas estruturas na cadeia central de poder. Associado a isto, esta esquerda da mais-valia relativa diverge da esquerda estatista europeia na medida em que o Estado não se expande por via da retracção da iniciativa privada, mas procurando o crescimento de ambas. Esta articulação institucional expressa-se, no plano internacional, na facilidade com que a tecnocracia dos BRICS participa em investimentos transnacionais junto da tecnocracia norte-americana e europeia. É, portanto, no pulsar dos processos de transnacionalização global com os blocos europeu e norte-americano e dos processos de transnacionalização intra-BRICS e com os restantes países emergentes que esta esquerda dos gestores tem desempenhado um papel incontornável para a expansão do capitalismo. Uma expansão de um ponto de vista mais vasto (peso tendencialmente crescente dos BRICS na taxa de crescimento do PIB mundial), mas também ao nível da implementação de sistemas de organização eficientes no interior das suas maiores empresas. Neste momento, os BRICS parecem estar mais avançados na consolidação de alianças económicas entre si do que, por exemplo, o acordo de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos. Ao nível económico, a União Europeia, constituída por Estados com muito maior proximidade geográfica, cultural e política, não tem conseguido finalizar o seu projecto de integração económica e política a um ritmo desejável, que lhe permita acompanhar os seus competidores. Portanto, a evolução das economias deve quase tudo a dinâmicas de índole socioeconómica. A discussão no plano cultural ou geoestratégico só serve para obscurecer as dimensões político-estruturais e económicas em causa.
Com efeito, na próxima secção vou abordar muito sucintamente dois episódios concretos mas que, vistos numa perspectiva estrutural, apresentam alguns dos contornos fundamentais do papel da esquerda da mais-valia relativa na basculação do toyotismo para novos pólos de acumulação capitalista.
Dois exemplos de como a conjuntura se articula com a estrutura
Há pouco mais de um mês ocorreram importantes greves na China :
«Simplesmente, ainda não houve uma greve desta dimensão e magnitude na China moderna. Enquanto as greves na China normalmente terminam assim que há resposta às reivindicações sobre um determinado assunto, esta greve é indefinida e em escalada: uma espécie de negociação coletiva através do motim. Aqui as reivindicações são mais estruturais; os trabalhadores rejeitaram as migalhas caídas da mesa dos patrões e o protesto alastra às províncias vizinhas. As mudanças na produção chinesa podem repercutir-se na produção global. Como assinalou Jacques Rancière: “A dominação do capitalismo a nível global depende da existência de um Partido Comunista Chinês que fornece às empresas capitalistas deslocalizadas trabalho barato e preços baixos, privando os trabalhadores do direito à auto-organização”. Devido às greves, o salário médio na China subiu 17% por ano desde 2009, e é hoje cinco vezes maior do que era em 2000».
Não vou aqui discutir o seu potencial de elevação das lutas para os próximos tempos, mas como este tipo de mobilizações sociais se insere na estrutura mais vasta que tenho vindo a comentar.
Para começar, reafirmo que é nos países de crescimento da mais-valia relativa que ocorrem as maiores lutas sociais. Os trabalhadores lutam mais quando há crescimento económico e vêem que, como diz o texto, «as migalhas caídas da mesa dos patrões» não chegam para satisfazer o direito a uma vida digna. Pelo contrário, em períodos de crise económica os trabalhadores, justificadamente, têm medo de perder o emprego, de perder salários, querem agarrar-se ao que ainda os pode “safar”. As crises económicas geram movimentos de força da classe dominante e ampliam a fragmentação dos trabalhadores. Por isso é que a resposta dos trabalhadores nas crises é genericamente pontuada pelo erguer das bandeirolas nacionais e dos patrioteirismos. Neste caso na China, pelo contrário, o que anima a luta daqueles trabalhadores é a reivindicação concreta laboral e não as tretas da soberania ameaçada e da ingerência externa. São a vida e as suas condições concretas que mobilizam as lutas que ou rompem com o capitalismo ou o modernizam, obrigando as empresas a fazer concessões mas a aumentar a produtividade do trabalho.
Por isso é que as lutas sociais autónomas são sempre positivas. Na melhor das hipóteses podem desaguar numa nova sociedade. Na pior das hipóteses, obrigam os gestores a reformular os mecanismos de extracção do excedente económico.
De referir que o sucesso do capitalismo chinês se deve à inovadora articulação entre os mecanismos mais modernos da mais-valia relativa (investimento massivo, lean production, empresariado moderno, internacionalização da economia) e os mecanismos mais terríveis da mais-valia absoluta (sectores com baixos salários, repressão laboral, Estado totalitário, ausência de liberdades democráticas). Ao mesmo tempo, como as lutas sociais não conseguiram romper esta articulação, fornecem uma base sólida para obrigar as empresas a responder às reivindicações laborais com um aumento da produtividade, conferindo um ainda maior dinamismo ao sistema. Mas ainda há quem à esquerda ache que o capitalismo está “ligado à máquina”…
Um segundo exemplo vem do Brasil, onde a Câmara dos Deputados aprovou um Plano Nacional de Educação em que é estabelecida a meta de, em 2024, o Estado brasileiro atingir um investimento de 10% do PIB em educação. Propaganda para ver se contraria os protestos nas ruas antes e durante o Mundial de Futebol, ou uma real intenção de prosseguir nos trilhos da mais-valia relativa? Provavelmente as duas coisas, já que, em contextos de crescimento económico, a consagração parcial de reivindicações é sempre parte estruturante de uma nova alavancagem do desenvolvimento económico.
Se esta proposta de Dilma Rousseff se concretizar, é mais um caso notável de um partido e de uma governação de esquerda que souberam, num mesmo movimento, revigorar a classe dos gestores, modernizar a economia e qualificar a força de trabalho, aproveitando a contestação da rua como motor relevante de todo este processo. A meu ver é impossível desligar a força transformadora do PT no capitalismo brasileiro (e mundial) sem se fazer referência, por um lado, ao papel dos movimentos sociais de 1985 a 2002 e, por outro, à capacidade que esse partido teve posteriormente para ir contendo e absorvendo a contestação social que ocorreu fora dos movimentos controlados pelos seus dirigentes. Pelo meio ainda conseguiu burocratizar e governamentalizar uma série de movimentos, bem como não tem tido grandes problemas em usar a força policial. Mas o essencial do processo iniciado em 2002 com a eleição de Lula da Silva passou pelo que escrevi na antepenúltima frase e que volto a mencionar: é um caso notável de um partido e de uma governação de esquerda que souberam, num mesmo movimento, revigorar a classe dos gestores, modernizar a economia e qualificar a força de trabalho, aproveitando a contestação da rua como motor relevante de todo este processo. PT, a esquerda dos gestores da mais-valia relativa no Brasil.
Para terminar
Num outro artigo escrevi que «dada a inseparabilidade do Estado e da economia capitalista, a esquerda dos gestores, seja qual for a sua forma histórica específica, situa-se dentro dos processos de reconversão institucional do capitalismo a partir do aparelho de Estado». Não me irei alongar sobre o assunto mas lembrar que, apesar de esta esquerda se concentrar em postos-chave do Estado, isso não significa que seja este o centro da acumulação de capital. Ao contrário das experiências capitalistas de Estado do passado, há uma integração e uma ampliação de interesses entre os gestores localizados no Estado central, nos sindicatos, nos movimentos e nas empresas. É isso que permite que a esquerda dos gestores esteja a ser bem-sucedida na internacionalização das empresas. Uma lista das 100 empresas mais desafiantes compilada pelo Boston Consulting Group incluía 58 provenientes do continente asiático, onde a China e a Índia despontavam. Em consonância, 83 das 500 empresas listadas pelo índice Fortune 500 localizam-se nas economias emergentes asiáticas da China, Índia, Malásia e Tailândia. Isto demonstra duas coisas. Primeiro, o capitalismo continua a expandir-se e os países governados pela esquerda dos gestores estão na vanguarda desse processo. Segundo, a integração mundial das economias emergentes, especificamente as que são lideradas pela esquerda dos gestores, não tem ocorrido com significativas fricções. Pelo contrário, a integração económica tem sido acompanhada por uma integração dos gestores. É a diversidade política, territorial e de origem que tem fortalecido a classe capitalista dos gestores no plano global e não o contrário. É a plasticidade social e institucional que proporciona aos gestores actuar em cada vez mais tabuleiros territoriais e sociais e, a partir daí, podem expandir as relações sociais capitalistas.
São Francisco que me perdoe, mas é de uma pobreza franciscana que ainda haja à esquerda quem ache que na China apenas imperem «condições que abriram portas a que hoje um chinês monte um computador a troco de uma tigela de arroz». O mais poderoso dos BRICS tem crescido exponencial e ininterruptamente durante três décadas e ainda há quem ache que isso apenas se deveria a aspectos unicamente derivados da mais-valia absoluta. Hoje existem transnacionais colossais de todos os BRICS precisamente porque articulam a mais-valia absoluta com a mais-valia relativa, mas tendo esta como ponta-de-lança. Seria impossível as transnacionais competirem internacionalmente e numa tal vastidão de mercados e de investimentos se apenas se alicerçassem nos mecanismos da mais-valia absoluta. Não é por acaso que, em conjunto, a «China e a Índia esperam atingir, em 2020, cerca de 1 bilião de consumidores de classe média», o que representará um mercado de 10 triliões de dólares. São muitas tigelas de arroz…
Por outro lado, se o modelo chinês (como o dos BRICS no seu conjunto) fosse apenas esse das tigelas de arroz, então Tiananmen não teria sido um ponto de viragem no capitalismo chinês mas o primeiro episódio para uma renovada stalinização da sua economia. No seio dos mecanismos da mais-valia relativa os momentos de repressão dos trabalhadores são isso mesmo, momentos para derrotar lutas sociais pela violência para subsequentemente absorverem aspectos dessas lutas para ampliar o sistema de extracção da mais-valia. Por exemplo, e continuando na China, Tiananmen não apenas não se repetiu como doravante explodiriam centenas de greves reivindicativas que permitiram ao Estado e às empresas responder com o aumento da produtividade do trabalho. Num contexto histórico em que os salários cresceram, só uma produtividade mais elevada poderia compensar esse aumento de custos (momentâneos) para os capitalistas. Ora, este é o mecanismo da mais-valia relativa, o da modernização capitalista, o eixo prevalecente no desenvolvimento económico dos BRICS.
Na Europa a esquerda dos gestores da mais-valia absoluta continuará a apostar na divisão nacional dos trabalhadores. Nos BRICS a esquerda dos gestores da mais-valia relativa continuará a expandir as relações capitalistas. Numa parte do globo, os gestores e candidatos a gestores fomentam a fragmentação dos trabalhadores. Noutra parte do globo, a outra esquerda dos gestores tem aproveitado as lutas sociais e o seu património passado para incrementar a mais-valia relativa. É possível uma esquerda sem gestores?
Centrais e confederações sindicais dos cinco países se reúnem com Dilma Rousseff para pedir participação no banco dos BRICS
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sindicatos-vao-pedir-a-dilma-participacao-no-banco-do-brics,1529125
Gostaria de fazer uma pergunta:
A partir da seguinte afirmação (permitam-me citar textualmente) – “Por isso é que as lutas sociais autónomas são sempre positivas. Na melhor das hipóteses podem desaguar numa nova sociedade. Na pior das hipóteses, obrigam os gestores a reformular os mecanismos de extracção do excedente económico” -, podemos chegar a conclusão de que a ausência de lutas autônomas (ou seja, lutas que ultrapassam os conflitos e negociações meramente burocráticas) enfraquece o desenvolvimento da produtividade no capitalismo?
Se pensarmos em uma sociedade como foi a União Soviética, podemos colocar o desenvolvimento burocrática da vida social – com as lutas autônomas que poderiam estimular a ampliação da produtividade sendo represadas e reprimidas – como um dos motivos centrais para a sua derrocada?
Tudo isso posto, o capitalismo “prefere” as lutas autônomas – desde, é claro, que o próprio sistema consiga posteriormente se readaptar seu funcionamento e enquadrar esses conflitos em estruturas institucionais burocráticas. É isso mesmo? O capitalismo sempre se expande e se renova com a participação de algumas pessoas que participaram dessas lutas autônomas – e não com pessoas que meramente tentam reprimir esse anseio de mudança. Podemos afirmar isso?
Sei que foram perguntas e afirmações numerosas. Com efeito, gostaria de ouvir o João Valente Aguiar, o João Bernardo e, claro, todos que se interessarem sobre esse tema – que considero fundamental.
Só para constar (apesar de julgar desnecessário – mas, nos dias de hoje, a interpretação de um texto está sendo uma das tarefas mais difíceis para alguns setores da esquerda): não estou a defender que a burocratização das lutas seja a melhor saída, já que o desenvolvimento ficaria emperrado. Miséria só gera miséria – e vice-versa, teórica e praticamente. João Valente já foi claro nesse ponto, ao falar da melhor e pior hipótese das positivas lutas autônomas.
Desde já muito obrigado.
Exílio Mondrian,
«podemos chegar a conclusão de que a ausência de lutas autônomas (ou seja, lutas que ultrapassam os conflitos e negociações meramente burocráticas) enfraquece o desenvolvimento da produtividade no capitalismo?»
Sim. Por exemplo o caso europeu e norte-americano mostra isso mesmo: zonas com menos lutas autónomas, mesmo que embrionárias, retiram pressão aos capitalistas para se renovarem. Mas esta questão deve ser vista num âmbito mais alargado. Por exemplo, os efeitos das lutas autónomas na China, na Itália, na França, nos EUA, na Polónia, na Alemanha, no Brasil, em Portugal, etc. ainda hoje estão presentes em vários dos principais mecanismos do toyotismo: dar controlo ao trabalhador na cadeia de produção (controlo para tomar decisões sobre aspectos muito específicos e técnicos do processo de produção, não sobre a produção em geral); círculos de controlo de qualidade; criatividade; utilização do trabalho intelectual; rede internacional de organização, etc. Nesse sentido, o toyotismo e os seus princípios continuam a expandir-se para os BRICS e vários outros países emergentes, o que demonstra o quanto o potencial e o impacto daquelas lutas continuam incorporados (e modificados) 40 ou 50 anos depois.
«Se pensarmos em uma sociedade como foi a União Soviética, podemos colocar o desenvolvimento burocrática da vida social – com as lutas autônomas que poderiam estimular a ampliação da produtividade sendo represadas e reprimidas – como um dos motivos centrais para a sua derrocada?»
Sim. Até porque à internacionalização das lutas sociais os capitalistas têm respondido com a crescente internacionalização dos negócios. Essa tendência não é directa, mas à onda internacional de 1916-21 verificou-se que a resposta nacionalista dos fascismos não foi capaz de desbloquear o desenvolvimento da mais-valia relativa. Mas o contexto 1945-75 é um avanço na internacionalização relativamente ao período 1929-45. Relativamente à onda internacional de lutas dos anos 60 e 70 os capitalistas responderam com uma internacionalização que ainda hoje continua (vd. Banco de Desenvolvimento para os BRICS ou o TTIP entre os EUA e a UE). Nesse sentido, o chamado bloco socialista era muito menos internacionalizado nas suas relações internas do que o capitalismo ocidental. Nesse sentido, esse é também um aspecto que demonstra o quanto o menor efeito das lutas sociais nos países capitalistas de Estado bloquearam o desenvolvimento da mais-valia relativa. De referir que quando falo em menor efeito nestes países estou a falar unicamente do que o sistema incorporava não propriamente a maior ou menor intensidade das lutas, que as houve e foram massivas. A questão é que os mecanismos da mais-valia absoluta reprimem, prendem, perseguem e chacinam. Na mais-valia relativa o Estado reprime e as empresas incorporam aspectos que lhes interessam.
Gostei da postura democrática com o meu comentário sobre a categoria de “gestores”, que simplesmente SUMIU. Acho que é porque o texto inteiro se baseava nesta mistificação e numa outra: a ideia de um “modelo BRICS”.
Tonho,
Não houve nenhum comentário com a sua assinatura e sobre esse assunto que tivesse sido excluído.
O Passa Palavra só exclui comentários insultuosos, de extrema-direita, fascistas ou irrelevantes para a discussão, conforme está anunciado na nossa política editorial.
O colectivo do Passa Palavra
O problema do texto é essa categoria esquisita dos “gestores”, como se fossem algo separado da burguesia.
Marx já distinguia capital-propriedade do capital-função. Os tais “gestores”, apesar de formalmente serem assalariados, são parte integrante das classes dominantes capitalistas. Os salários altíssimos permitem-nos acumular patrimônio financeiro e imobiliário. Na verdade, o “salário” dos gestores capitalistas não é “salário” no mesmo sentido que do operário. Eles não estão “vendendo” a sua força de trabalho. É uma forma dissimulada de usufruir do valor extraído da mais-valia, participando na acumulação de capital. Trata-se, na verdade, de uma espécie de “burguesia assalariada”. É bizarro sim, mas não se deve confundir a forma jurídica com as relações de produção.
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O coletivo Passa Palavra
Tonho,
a burguesia era a classe capitalista fundamentalmente proprietária jurídica dos meios de produção. No fundo, se há classe social próxima daquele ideal que a esquerda propaga de um indivíduo rico com cartola e a fumar um charuto é a burguesia.
Mas a complexificação dos processos de produção e o desenvolvimento das lutas sociais permitiram que surgisse uma outra classe capitalista que tem como principal função a direcção do processo de produção, tanto a nível global e macro como ao nível de cada empresa. Naturalmente a direcção e administração do processo de produção têm como objectivo duplo manter a integração de todo o sistema e expandir as oportunidades de acumulação de capital.
Sobre as lutas sociais, os gestores e a comichão que o conceito provoca. Os gestores representam uma classe heterogénea e que não apenas controlam as empresas, os organismos internacionais e o Estado num nível superior, como vai buscar dirigentes de organizações políticas burocratizadas. Esta fracção dos gestores permite controlar as lutas sociais e conduzi-las para ampliar os mecanismos da mais-valia relativa (ver meu comentário de dia 16).
Para terminar. Um indivíduo como George Soros é fundamentalmente um gestor e não um burguês, na medida em que não apenas visa o lucro mas porque o fornecimento de crédito para investimentos colossais é um dos instrumentos fundamentais de integração e regulação sistémica. Não é menos capitalista por isso. Bem pelo contrário.
A primeira teoria dos gestores — denominando eu com esta palavra aquilo a que na língua inglesa se chama managers — foi elaborada e divulgada por Makhayski no exílio siberiano, nos anos de passagem do século XIX para o século XX. Os seus escritos foram muito lidos pelos condenados políticos na Sibéria e dali passaram ao interior do país e aos meios da emigração russa na Europa. Existe uma biografia de Makhayski (Marshall S. Shatz, Jan Wacław Machajski. A Radical Critic of the Russian Intelligentsia and Socialism, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1989). As passagens principais da obra de Makhayski encontram-se reunidas numa antologia editada no Brasil (Maurício Tragtenberg (org.) Marxismo Heterodoxo, São Paulo: Brasiliense, 1981).
A primeira guerra mundial, pela conjugação de esforços económicos que exigiu nos principais países beligerantes, gerando uma planificação central virada para a economia de guerra, desenvolveu muito a classe dos gestores e colocou-a pela primeira vez num lugar económico e político dominante. Inevitavelmente, esta transformação social suscitou a sua análise teórica, que ocorreu nos Estados Unidos na era pós-wilsoniana e também na Áustria e na Alemanha, salientando-se ali a figura de Rathenau. Ao mesmo tempo, a revolução russa pode — e, na minha opinião, deve — ser considerada como uma revolução proletária, isto é, camponesa e operária, que nos anos decisivos do chamado comunismo de guerra se converteu numa revolução de gestores, consolidada depois pela NEP e pelos planos quinquenais.
Entretanto, na Alemanha da república de Weimar começaram também a proliferar teorias que não distinguiam claramente entre os gestores e os empregados de escritório, reunindo-os a todos no conceito ambíguo de trabalhadores de colarinho branco. Este tipo de teorizações receberia mais tarde um novo alento nos Estados Unidos, sobretudo a partir da década de 1950. A realidade, porém, encarregou-se de distinguir muito claramente os gestores e os trabalhadores dos escritórios, aos quais se foram progressivamente aplicando as normas tayloristas, até que finalmente, na época actual, os microcomputadores ajudaram a converter os escritórios em fábricas de serviços.
Mas, regressando à época entre as duas guerras mundiais, as teorias sobre a classe dos gestores desenvolveram-se simultaneamente em cinco perspectivas políticas. 1) Entre os fascistas italianos, e em geral entre todos os fascistas mais ou menos influenciados pelas teorias corporativistas de Manoilescu, houve quem começasse a considerar a classe dos gestores como o meio social por excelência do regime. 2) O mesmo interesse pelos gestores começou a verificar-se nas democracias europeias. Na França e na Bélgica o tema da economia organizada estava ligado à noção da existência de uma classe de gestores. Aliás, frequentemente estas concepções geradas na democracia se sobrepuseram às concepções caracterizadamente fascistas, uma convergência levada a cabo depois de 1940 na Europa ocupada pelo Terceiro Reich. 3) Nos Estados Unidos, sobretudo na era do New Deal, as análises sobre a separação entre propriedade e controlo, entre accionistas e administradores, levou à formulação de teorias sobre a classe dos gestores. 4) Nos meios da social-democracia alemã e austríaca houve também quem analisasse esta nova classe dominante com acuidade e presciência. 5) Na União Soviética, nas prisões e nos campos de concentração a que os opositores de esquerda eram condenados, começou também — dolorosamente — a interpretar-se o novo poder bolchevista como um poder de classe dos gestores. O livro de Anton Ciliga (Au Pays du Mensonge Déconcertant. Dix Ans Derrière le Rideau de Fer, Paris: Union Générale d’Éditions (10/18), 1977 [1ª ed. 1938]) e vários escritos de Victor Serge dão testemunho desta difícil gestação intelectual.
Entretanto, após a expulsão de Trotsky da União Soviética, todas aquelas pessoas e correntes que, cindindo de Trotsky, se situavam à sua esquerda, opunham a noção da existência de uma classe de gestores à noção trotskista de burocracia. Ocorreu aqui, no entanto, uma divisão em dois grandes campos: uns consideravam os gestores como uma classe capitalista, agente de um capitalismo de Estado; outros, considerando-os também como uma classe dominante e exploradora, admitiam que os gestores abriam uma nova época histórica, pós-capitalista. A este propósito pode ler-se com muito proveito Henri E. Morel («As Discussões sobre a Natureza dos Países de Leste (até à II Guerra Mundial): Nota Bibliográfica», em Artur J. Castro Neves (org.) A Natureza da URSS (Antologia), Porto: Afrontamento, 1977). O grupo Socialisme ou Barbarie, de que Castoriadis é o nome mais conhecido, vem na cauda do cortejo, como uma das derradeiras manifestações destas cisões repetidas.
Um dos últimos a romper com Trotsky, pouco antes do seu assassinato, foi James Burnham, que depois evoluiu para a direita, e graças a ele a interpretação originariamente esquerdista da classe dos gestores passou para as universidades norte-americanas e daí para as francesas, onde se juntou a outras interpretações directamente provenientes do esquerdismo, gerando um caldo de cultura propenso a este tipo de análises e que floresceu por ocasião da greve geral de Maio-Junho de 1968.
Quando eu comecei a dar aulas no Brasil, em 1984, e precisamente a dar aulas sobre a teoria da classe dos gestores, já estas noções tinham curso graças a Bresser-Pereira e ao saudoso Fernando Prestes Motta, que aliás a denominavam tecnoburocracia (por exemplo, Luiz Carlos Bresser Pereira, A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, São Paulo: Brasiliense, 1981). Maurício Tragtenberg encontrava-se em estreita afinidade com este tipo de teorização e deve recordar-se, na mesma perspectiva, um livro de Maria de Lourdes Manzini Covre (A Fala dos Homens. Análise do Pensamento Tecnocrático, 1964-1981, São Paulo: Brasiliense, 1983). Outras pessoas estavam a produzir análises convergentes. Entretanto, um número crescente de alunos começou a trabalhar no tema e, como sucede inevitavelmente, alguns tornaram-se professores, fazendo a roda girar.